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Setembro de 2017
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A União Europeia (UE) e o sub-bloco regional da América Latina, formado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai (o Mercosul) vêm negociando um tratado de livre comércio (TLC) desde o ano 2000. O TLC UE-Mercosul é amplo, abarcando o comércio de bens industriais e agrícolas, potenciais mudanças nas regras aplicáveis a pequenas e médias empresas e às compras públicas, e provisões sobre propriedade intelectual como patentes e direito de autor e direitos conexos. As negociações para um TLC UE-Mercosul continuam em um momento em que vários dos países afetados — incluindo Argentina, Uruguai, Paraguai e até a União Europeia — encontram-se em um processo de revisão de suas próprias leis de direito de autor e direitos conexos.
As negociações mais recentes aconteceram em Bruxelas em setembro de 2017. A próxima rodada será sediada em Brasília em outubro de 2017, e ambas as partes esperam assinar o acordo neste ano.
Apenas alguns capítulos da proposta do TLC UE-Mercosul foram disponibilizados ao público. Em novembro de 2016, a União Europeia publicou uma proposta do capítulo sobre propriedade intelectual, que é a versão mais recente disponível publicamente. As organizações da sociedade civil e o público são geralmente excluídas de participar em — ou de até observar — as reuniões de negociação.
As negociações do TLC UE-Mercosul acontecem em um contexto de ampliação da construção de políticas de direito de autor e direitos conexos por meio de acordos de comércio multilaterais. Existem diversas negociações em curso, incluindo o Tratado Trans-Pacífico (TPP), a Associação Econômica Regional Ampla (RCEP, na sua sigla em inglês), e a renegociação do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (TLCAN).
Cada um desses acordos inclui provisões que regulam a propriedade intelectual, e as recentes rodadas de negociação desses pactos comerciais mostram que, quando se põem o direito de autor e os direitos conexos em jogo, há uma pressão significativa para incrementar drasticamente as medidas de observância (enforcement) dos titulares de direitos, junto com pressões para aumentar os prazos de duração, e exigir sanções mais severas por infrações. Ao mesmo tempo que as demandas dos titulares de direitos são completamente atendidas, pouquíssima consideração é dada aos direitos do público. As limitações e exceções para os direitos de autor e conexos são minimizadas, ou sequer estão presentes. No texto em questão, é perceptível a mão invisível (e poderosa) da União Europeia, que deseja exportar as cláusulas mais benéficas para os detentores de direitos (como maiores prazos de proteção harmonizados), mas só quer permitir o mínimo absoluto quando se tratam de limitações e exceções (admitindo apenas a cópia temporária).
Abaixo nós oferecemos uma análise de aspectos particulares do capítulo sobre propriedade intelectual do acordo UE-Mercosul, tanto em relação à operação de licenças Creative Commons, quanto às implicações de políticas públicas no que diz respeito ao domínio público e às limitações e exceções aos direitos de autor e conexos.
A extensão dos prazos de proteção do direito de autor é desnecessária e injustificada
O texto provisório do capítulo sobre propriedade intelectual propõe estender a duração da proteção do direito de autor para aqueles países que ainda não aderiram ao prazo de 70 anos após a morte (o chamado vida + 70). Para todos os signatários da Convenção de Berna, a proteção é concedida aos autores por um tempo limitado, como um mecanismo para retribuir criadores em troca do direito do público de, em algum momento do futuro, reutilizar e trabalhar sobre essas obras incondicionalmente. Assim que o prazo do direito de autor expira, as obras ingressam no domínio público e podem ser utilizadas por qualquer um para qualquer propósito. O domínio público é a fonte de matéria prima a partir da qual a criatividade e o conhecimento se constroem. Enquanto o prazo de duração do direito de autor varia levemente de país para país, ele tem aumentado continuamente nos últimos 200 anos. O capítulo sobre propriedade intelectual exige que as partes estabeleçam o prazo de proteção do direito de autor em vida + 70 (se o país respectivo ainda não aderiu a esse prazo). Isso aumenta o prazo em 20 anos sobre o mínimo requerido pelo acordo ADPIC (TRIPS) e o Tratado de Direitos Autorais da OMPI.
Os direitos de um autor de uma obra literária ou artística, segundo o artigo 2o da Convenção de Berna, durarão toda a vida do autor e 70 anos depois de sua morte…
Por meio de TLCs existentes, a União Europeia já implementou um prazo de proteção de vida + 70. Brasil, Paraguai e Argentina também possuem um prazo de vida + 70 para a maioria das obras, como resultado de suas legislações nacionais. Os termos do TLC UE-Mercosul na prática prenderiam esses países ao prazo de vida + 70, ainda que tecnicamente o acordo ADPIC exija apenas o prazo de vida + 50.
O Uruguai tem um prazo de proteção de vida + 50. Se o TLC UE-Mercosul for adotado, o prazo do Uruguai aumentaria em mais 20 anos. Isso significaria que mais de 500 autores cujas obras estão em domínio público passariam a estar novamente sob a proteção dos direitos de autor.
Alguns países do Mercosul adotaram um prazo de vida + 70 para a maioria das obras, mas não para todas. Na Argentina, algumas fotografias recebem um prazo mais curto de proteção. No Brasil, as obras fotográficas e audiovisuais estão protegidas durante 70 anos após a sua publicação, não após a morte do autor. E em acordos similares, como no TLC entre a União Europeia e os países andinos, o direito de autor sobre obras audiovisuais dura 70 anos depois que as obras se tornam disponíveis ao público. Adotar o TLC UE-Mercosul estabeleceria um prazo de vida + 70 para todas as obras.
Estender ainda mais os prazos de direitos de autor exacerba desafios relacionados, como o problema das obras órfãs. As obras órfãs são obras que ainda estão sob proteção de direito de autor, mas cujo titular é impossível de ser identificado ou contatado. Aumentar a duração de proteção do direito de autor aumentaria o número de obras que permanecem protegidas por mais tempo. E dado que muitas obras antigas protegidas não são mantidas por seus titulares de maneira ativa, aumentar os prazos poderia piorar o problema das obras órfãs. Em todo caso, as repercussões negativas para a sociedade de postergar o ingresso da criatividade humana no domínio público superam amplamente os benefícios para os autores individuais.
Os direitos dos usuários devem ser protegidos mediante a expansão das limitações e exceções
A proteção dos direitos de autor e conexos e as medidas de observância (enforcement) devem sempre ser equilibradas com considerações de interesse público; em outras palavras, os direitos de autor e conexos devem sempre ser moderados pelo reconhecimento e pela defesa dos direitos dos usuários no ecossistema
Entretanto, o capítulo de propriedade intelectual diz pouco em relação às limitações e exceções dos direitos de autor e conexos.
“As partes deverão prever limitações e exceções ao direito exclusivo apenas em certos casos especiais que não interfiram com a exploração normal da obra e não causem prejuízos injustificados aos interesses legítimos dos titulares de direitos”.
Essa é a linguagem comum encontrada nos textos dos tratados existentes, como a regra dos três passos de Berna. Porém, o que o texto do tratado UE-Mercosul não inclui são salvaguardas introduzidas nos últimos acordos comerciais e nos acordos internacionais de direito de autor e direitos conexos, que promovem e protegem o equilíbrio. Mesmo com todas as suas falhas, o capítulo sobre propriedade intelectual do Tratado Trans-Pacífico (TPP) inclui a seguinte linguagem:
“Cada parte empreenderá esforços para obter um equilíbrio apropriado em seu sistema de direitos de autor e conexos, entre outras coisas por meio de exceções e limitações…”
Como foi mencionado acima, é importante incluir provisões que obriguem as partes a considerar seriamente as limitações e exceções aos direitos de autor e conexos juntamente com qualquer harmonização ou aumento de proteção e medidas de observância (enforcement). (Outra linguagem modelo está documentada aqui).
O capítulo provisório de propriedade intelectual propõe apenas uma estreita exceção aos direitos de autor e conexos, para as cópias temporárias e incidentais.
“As partes devem garantir que os atos de reprodução que são temporários ou incidentais, que sejam uma parte integral e essencial dos processos tecnológicos e cujo único propósito seja permitir (a) uma transmissão em uma rede entre terceiros através de um intermediário, ou (b) um uso legal de uma obra ou outro tipo de conteúdo a ser criado, e que não tenha nenhum significado econômico independente, com exceção dos direitos de reprodução”.
Essa linguagem alinharia os países do Mercosul com uma exceção similar (art. 5.1) já presente na Diretiva InfoSoc 2001 da União Europeia. Dado que essa exceção é uma das poucas exceções obrigatórias presentes no marco dos direitos autorais da União Europeia, a introdução de uma exceção equivalente nos países do Mercosul é desejável para a UE para que exigir de seus parceiros comerciais a adoção de uma exceção de base similar (e limitada), equivalente à europeia. Ainda que seja razoável excetuar esse tipo de cópias do direito de reprodução, a linguagem é muito limitada, e protegeria apenas um conjunto muito restrito de atividades, como a necessária criação e execução de cópias de cache para a entrega de conteúdos web. Para que a exceção seja mais útil em um cenário tecnológico em constante mudanças, a provisão deveria ser expandida mediante a remoção dos adjetivos “temporárias” e “incidentais”, para ampliar a proteção para além das cópias temporárias. Essa troca de linguagem tornaria o texto mais alinhado às práticas atuais, nas quais se fazem cópias permanentes (e não temporárias) de conteúdos protegidos para atividades como o aprendizado por máquinas (machine learning), a inteligência artificial, as buscas pela Internet, as ferramentas de tradução etc., mas que ainda poderiam ser consideradas dentro do espírito da exceção. Esses atos de reprodução deveriam estar isentos.
Cabe destacar e é positivo que essa linguagem crie um dever afirmativo (“proverão”), de exceção obrigatória. Também é benéfico que essa seja uma obrigação de prover uma exceção aos direitos de autor e conexos, em vez ser apenas uma limitação da responsabilidade dos intermediários (“safe harbour”) (como foi feito no texto do TPP).
A remuneração obrigatória frustra as intenções de licenciantes em Creative Commons
O capítulo de propriedade intelectual inclui uma provisão que estabeleceria remuneração obrigatória para os intérpretes e produtores de obras musicais. A cláusula harmoniza a situação legal dos países do Mercosul com o marco já existente na União Europeia sob a Diretiva 2006/115/EC sobre direitos de aluguel e empréstimo:
As partes devem outorgar um direito para garantir que uma remuneração equitativa única seja paga por parte do usuário aos intérpretes e produtores de fonogramas, se um fonograma publicado para fins comerciais, ou uma reprodução desse fonograma, for utilizada para transmissões por mídias sem fio ou para qualquer comunicação para o público…
A cláusula pode ser bem intencionada no sentido de indicar o provimento de um único pagamento aos intérpretes e produtores de obras musicais. E é limitada apenas a situações em que a gravação é publicada com fins comerciais.
Ao mesmo tempo, esse tipo de arranjo interferiria com a operação de algumas licenças Creative Commons ao exigir um pagamento mesmo quando a intenção do titular é compartilhar sua obra criativa com o mundo de maneira gratuita. Por exemplo, um intérprete poderia escolher liberar uma interpretação musical sob uma licença Creative Commons que intencionalmente permite a reutilização comercial, como a licença CC BY. Muitos titulares simplesmente querem compartilhar sua criatividade livremente sob termos abertos para fins promocionais, ou simplesmente para o benefício do bem público, e não porque têm expectativa de uma remuneração monetária. De fato, sua escolha de uma licença como a CC BY expressamente permite o uso comercial.
O acordo deveria permitir uma exceção a essa regra para aqueles intérpretes e produtores que desejam compartilhar suas obras sob licenças abertas sem remuneração.
Medidas de proteção tecnológica não devem limitar o exercício dos direitos dos usuários
O capítulo de propriedade intelectual inclui proibições à circunvenção de medidas tecnológicas de proteção para ter acesso a uma obra:
As partes outorgarão uma proteção legal adequada contra a circunvenção de qualquer medida tecnológica efetiva, que a pessoa interessada realize com o conhecimento ou com bases razoáveis para saber que está perseguindo esse objetivo…
Também inclui uma provisão que proibiria a criação e o compartilhamento de tecnologias que poderiam permitir a um usuário circunvencionar medidas tecnológicas de proteção:
As partes proverão proteção legal adequada contra a fabricação, importação, distribuição, venda, aluguel, anúncio para venda ou aluguel, ou possessão para fins comerciais, de dispositivos, produtos ou componentes ou para a prestação de serviços…
Esse tipo de linguagem é reconhecível nos tratados e acordos de livre comércio. O problema é que ela não leva em conta situações nas quais os usuários deveriam ser capazes de se beneficiar uma uma limitação ou exceção, mas não podem fazê-lo devido às proibições sobre a circunvenção de medidas tecnológicas de proteção. Há de se adicionar linguagem que proteja o exercício das exceções para qualquer propósito que esteja protegido pelas limitações e exceções dos direitos autorais. Por exemplo, o Tratado de Beijing, em seu artigo 15, FN10 (proposto pelo Peru na negociação), inclui o seguinte texto:
Compreende-se que nada neste artigo previne uma Parte Contratante de adotar medidas efetivas e necessárias para assegurar que um beneficiário possa desfrutar das limitações e exceções previstas na lei nacional da Parte Contratante…
Ordens judiciais preventivas contra infrações “iminentes” prejudicam a liberdade de expressão e a certeza jurídicas
O capítulo de propriedade intelectual introduz a ideia de que, por ordem judicial, tanto infratores quanto intermediários (o que inclui os provedores de serviços) poderiam ser obrigados a tomar providências para “prevenir qualquer infração iminente de um direito de propriedade intelectual” (art. 15). Isso significaria que os titulares de direitos podem tomar ações legais preventivas contra uma infração que ainda não ocorreu. Essa prática é injustificada e prejudicial liberdade de expressão, tanto para o indivíduo acusado da infração, quanto para outros usuários da plataforma. A provisão não apenas viola o artigo 13 da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, mas também contradiz os termos do artigo XX.4 da proposta, que estabelece que um provedor “não é responsável… se não tem informação ou conhecimento real de uma atividade ilegal”. Se uma infração ainda não ocorreu, então não pode haver nenhuma possibilidade de que os provedores de serviços de Internet o saibam.
Negociações de acordos comerciais devem ser transparentes e envolver o público
Negociações de acordos comerciais devem ser transparentes e participativas. E não o são. A confidencialidade demonstrada na negociação do TPP e de outros tratados de livre comércio têm deixado organizações como a Creative Commons e o público em geral em extrema desvantagem, na medida em que apenas alguns poucos atores privilegiados convidados ao círculo fechado de negociação tiveram seus interesses plenamente considerados. As negociações entre a União Europeia e o Mercosul devem ser levadas a cabo por meio de procedimentos que sejam transparentes para o público e que incluam todas as partes interessadas. Maior transparência e uma participação pública significativa levarão a melhores resultados.
Como foi assinalado acima, a última versão do capítulo de propriedade intelectual que foi disponibilizada data de novembro de 2016. As agências responsáveis pela negociação do tratado de livre comércio União Europeia-Mercosul deveriam lançar publicamente o texto proposto para a negociação antes de cada rodada, e publicar o texto considerado após cada rodada de negociação. Legisladores a nível nacional deveriam ser consultados ativamente durante a negociação do acordo. Além disso, as organizações da sociedade civil e os representantes do público deveriam ser capazes de observar os registros da negociação, e os negociadores deveriam convidar atores sub-representados a participar das reuniões. As opiniões e recomendações dos grupos da sociedade civil e do público deveriam ser considerados séria e cuidadosamente.
Conclusão
Tanto em sua essência como em seu processo, o tratado de livre comércio UE-Mercosul está seguindo os infelizes passos de pactos comerciais negociados recentemente, como o TPP. Suas provisões têm a intenção de exportar o marco protecionista de direitos de autor e conexos que já existe na União Europeia, o que para alguns países do Mercosul incluirá estender a duração dos direitos, garantindo apenas limitações e exceções extremamente fracas, e a harmonização das restrições ao compartilhamento. Este tratado de livre comércio prejudicará o conjunto de bens comuns (commons) e os usuários. Limitará a capacidade dos países do Mercosul de construir políticas públicas apropriadas para o exercício pleno de direitos fundamentais, como o direito à cultura e à educação.
As negociações do tratado da UE-Mercosul permanecem majoritariamente secretas e fechadas, com pouco conhecimento público sobre o que realmente está em seu texto, e poucas oportunidades para o público expressar suas preocupações. As negociações devem ser reformadas para dar lugar a um processo que seja transparente, inclusivo e que garanta prestação de contas. É legítimo questionar se acordos de tão grande alcance efetivamente podem promover comércio e atividade econômica que sejam benéficos para a maioria dos cidadãos, em vez de para alguns poucos detentores de direitos. Mas, assumindo que este processo irá continuar, é crucial que os negociadores repensem as provisões sobre os direitos de autor e conexos para proteger os usuários e o bem público.