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Direito autoral no tratado comercial Mercosul-UE: poucas melhoras e muitos retrocessos
CopyrightPublicado originalmente em inglês em 6 de abril de 2018. Tradução: Ana Luiza Araújo
Uma proposta recém vazada do tratado de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia mostra pequenas melhorias no capítulo sobre propriedade intelectual. Agora parece que a extensão desnecessária e injustificada dos prazos de direito de autor por 20 anos não está mais no tratado, e as partes introduziram alguma flexibilidade para que os usuários contornem as medidas técnicas de proteção com o objetivo de exercer seus direitos. Mas, em sua maior parte, as negociações continuam a favorecer um maior endurecimento do direito de autor às custas das proteções de direitos dos usuários e dos bens comuns. Como explicaremos abaixo, as medidas para apoio do domínio público continuam a ser diluídas, a cláusula que requer a compensação obrigatória — indiferentemente se o criador a deseja ou não — está mantida, e a seção que delimita as exceções e limitações aos direitos autorais foi reduzida ao mínimo.
No ano passado, em colaboração com diversos parceiros de nossa rede global, a Creative Commons publicou uma breve análise de políticas, cobrindo diversos problemas relacionados ao direito de autor em um esboço do capítulo sobre propriedade intelectual do tratado de livre comércio Mercosul-UE.
A União Europeia (UE) e o sub-bloco regional da América Latina, formado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai (o Mercosul) vêm negociando um tratado de livre comércio (TLC) desde o ano 2000. O TLC UE-Mercosul é amplo, abarcando o comércio de bens industriais e agrícolas, potenciais mudanças nas regras aplicáveis a pequenas e médias empresas e às compras públicas, e provisões sobre propriedade intelectual como patentes e direito de autor. Nessa análise, nós examinamos as questões que afetariam o domínio público, a criatividade e o compartilhamento, e os direitos de usuário na era digital.
As negociações do TLC Mercosul-UE acontecem em um ambiente no qual as políticas de direito de autor se estabelecem de maneira crescente por meio de acordos de comércio multilaterais. Dentre os principais pontos defendidos em nossa análise, destacamos os seguintes:
- Os prazos de proteção do direito de autor não devem ser estendidos;
- Os direitos dos usuários devem ser protegidos mediante a expansão das limitações e exceções;
- A remuneração obrigatória interfere com o licenciamento em Creative Commons;
- Medidas de proteção tecnológica não devem limitar o exercício dos direitos dos usuários.
Nós também compartilhamos do princípio de senso comum de que negociações para acordos comerciais devem ser transparentes e incluir o público, não secretas e decididas atrás de portas fechadas.
Desde a nossa análise, mais duas versões provisórias do capítulo sobre propriedade intelectual foram vazadas. Uma foi publicada pelo Greenpeace em dezembro de 2017, com base na 28ª rodada de negociações. Outra foi publicada na última semana pelo site bilaterals.org, com base no texto consolidado ao final da 32ª rodada de negociações que teve fim em março.
Como escreveu Jorge Gemetto no blog da Communia Association, o texto do capítulo sobre propriedade intelectual revelado pelo Greenpeace mostrou um significativo desentendimento entre as partes.
É fácil perceber que, enquanto o interesse da União Europeia é o de aumentar os prazos e áreas de proteção da propriedade intelectual, assim como impor novas penas para as infrações, os países do Mercosul procuram evitar padrões mais altos de propriedade intelectual, incorporar limitações e exceções obrigatórias para o direito de autor, e favorecer a identificação e proteção do domínio público.
Como adverte Gemetto, há uma grande discrepância entre os poderes de negociação de cada parte, com a UE claramente tendo a vantagem. E com a UE já alinhada com o restritivo marco regulatório “TRIPS Plus”, há uma procura por exportar essas medidas mais duras de proteção e aplicação em outros lugares.
Por fim, chegamos ao capítulo mais recente sobre propriedade intelectual publicado pela organização bilaterals.org, no qual temos algumas mudanças notáveis desde a versão do Greenpeace.
A menção ao domínio público será diluída e enterrada
A versão vazada pelo Greenpeace (em dezembro de 2017) revelou a discussão entre as partes sobre se (e como) deveria haver uma menção de apoio ao domínio público no Artigo 4 (Princípios). A UE propôs a linguagem “As Partes reconhecem a importância de um domínio público robusto, rico, e acessível”, enquanto os países do Mercosul defenderam a redação “As Partes levarão devidamente em conta a necessidade de preservar um domínio público robusto, rico e acessível, e devem cooperar mutuamente para identificar os diferentes materiais que ingressaram no domínio público.”
A versão da UE ganhou. O texto consolidado compartilhado pela bilaterals.org agora diz “As Partes reconhecem a importância de um domínio público robusto, rico, e acessível”. Além disso, uma nota no documento muda o texto da seção de “Princípios” para a seção de “Cooperação”.
A remuneração obrigatória fica
A versão anterior publicada pelo Greenpeace mostrava que as partes estavam discutindo se haveria a remuneração obrigatória (Artigo 9.6) para os intérpretes, músicos executantes e produtores musicais. A UE queria que a redação do texto fosse “As Partes conferem um direito para garantir que uma única remuneração equitativa seja paga pelo usuário aos intérpretes, músicos executantes e produtores de fonogramas, se um fonograma for publicado para fins comerciais, ou a reprodução de tal fonograma for utilizada para a difusão por meios sem fio ou para qualquer comunicação ao público.” Os países do Mercosul queriam apenas fazer deste um direto opcional, sugerindo que o texto fosse “As Partes poderão conferir…”
A versão da UE venceu. O texto consolidado diz “conferem”. Essa mudança repete um tema comum visto entre as negociações: cláusulas que se referem à aplicação da propriedade intelectual e à proteção dos detentores de direitos incumbentes são obrigatórias (“devem”), enquanto cláusulas que iriam beneficiar os usuários e o interesse público são apenas opcionais (“podem”). Este tipo de arranjo poderia interferir na operação de algumas licenças de Creative Commons ao exigir um pagamento mesmo quanto a intenção do autor seja o compartilhamento de seu trabalho criativo com o mundo de graça.
A extensão do prazo do direito de autor foi posta em suspensão
O texto provisório revelado pelo Greenpeace mostrava que as partes continuaram a discutir sobre os prazos do direito de autor (Artigo 9.7). A UE queria direitos vitalícios + 70 anos, enquanto os países do Mercosul os mesmo vitalícios + 50 anos.
O texto consolidado agora diz “transcorrerá durante a vida do autor e por não menos do que 50 ou 70 anos quando assim prover a legislação nacional das Partes…”.
A versão do Mercosul venceu porque o texto afirma que se aplicarão os termos nacionais existentes. Essa é uma melhora significativa no sentido de que não exige que os países com prazos mais curtos aumentem-os para o prazo mais longo. Estender ainda mais os prazos do direito de autor não faz nada para promover a criação de novos trabalhos, e até exacerba os desafios relacionados com prazos maiores, como o problema de obras órfãs.
Exceções e limitações reduzidas ao mínimo
A versão do Greenpeace mostrou que as partes estavam discutindo sobre o escopo da seção sobre limitações e exceções (Artigo 9.9). O Mercosul queria incluir uma lista não-exaustiva de usos aceitáveis a serem cobertos sob as limitações e exceções, incluindo críticas, notícias, educação, e pesquisa.
No entanto, o texto consolidado publicado pela bilaterals.org não inclui a lista não-exaustiva. Ao invés disso, ele essencialmente volta a se apoiar no texto da regra dos três passos (“Cada Parte irá estabelecer exceções e limitações para os direitos exclusivos apenas em certos casos especiais que não entrem em conflito com a exploração normal da obra e não prejudiquem de maneira injusta os interesses legítimos dos titulares de direitos”).
Medidas de proteção e aplicação dos direitos de autor devem sempre ser equilibradas com considerações do interesse público; em outras palavras, os direitos dos autores devem sempre ser moderados, reconhecendo-se e defendendo-se os direitos dos usuários no ecossistema dos direitos de autor. O texto consolidado somente provê o mínimo de considerações para os direitos de usuários.
Alguma flexibilidade para o exercício de direitos sob os esquemas de medidas tecnológicas de proteção
Por último, a versão do Greenpeace revelou que a UE estava propondo uma nova linguagem sobre medidas tecnológicas de proteção (Artigo X.15). Neste esboço anterior, não havia a inclusão de um texto que permitisse qualquer circunvenção de medidas tecnológicas para que um usuário possa exercer seus direito sob uma exceção ou limitação.
No entanto, o texto consolidado agora inclui a seguinte linguagem: “As Partes (UE: quando for permitido de acordo com suas leis nacionais) deverão (UE: poderão) garantir que os detentores de direito deixem à disposição do beneficiário de uma exceção ou limitação, na medida necessária para beneficiar-se dessa exceção ou limitação”. Então, parece que haverá pelo menos alguma consideração legal para proteger a capacidade de usuários de contornar as medidas tecnológicas de proteção para exercer seus direitos sob uma exceção ou limitação.
Conclusão
Ao mesmo tempo em que é positivo que ao menos as partes estejam chegando à conclusão de renunciar à desnecessária extensão do prazo dos direitos de autor, a maioria das mudanças na versão consolidada do texto mostra um contínuo endurecimento da proteção do direito autoral, o que favorece os titulares de direitos às custas dos usuários e dos bens comuns.
Além disso, as negociações continuam essencialmente secretas e fechadas, com pouco conhecimento público, salvo por esses úteis vazamentos, e poucas oportunidades para o público expresse suas preocupações. As negociações devem ser reformadas para apoiar plenamente um processo que seja transparente, inclusivo, e responsável.
Posted 06 April 2018